A Impunidade não pode Prevalecer

É importante ressaltar que esse julgamento, além de prover de um legítimo ato de justiça, pode orientar um novo rumo para que a segurança em eventos seja içada realmente a uma categoria blindada à ganância, amadorismo, achismos e falta de humanidade.

Quase 09 anos depois, iniciou-se em Porto Alegre, o julgamento dos quatro réus acusados (dois sócios da boate —Elissandro Callegaro Spohr, conhecido por Kiko, e Mauro Londero Hoffmann— e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira —o produtor musical Luciano Augusto Bonilha Leão e o músico Marcelo de Jesus dos Santos) de serem os responsáveis pelo incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria (RS), que ocasionou a morte de 242 pessoas, 632 feridos e uma lacuna sedimentadora que a segurança em eventos no Brasil ainda não está em um patamar de real responsabilidade e respeito.

O Tribunal do Júri -ao todo, 25 pessoas, porém só sete delas vão compor o Conselho de Sentença - tem previsão de durar aproximadamente 15 dias e é importante ressaltar que os quatro, que ficaram presos por quatro meses e estão atualmente em liberdade, serão julgados exatamente por 242 homicídios simples com dolo eventual (quando, mesmo sem intenção, assume-se o risco de matar) e por 636 tentativas de assassinato.

Vale compreender que no Brasil, a pena por homicídio simples varia de seis a 20 anos de prisão. Já o cálculo da condenação pelas tentativas de assassinato leva em conta a pena pelo homicídio, mas subtraído de 1/3 a 2/3, segundo o Código Penal. Ou seja, se uma pessoa for condenada a 12 anos de prisão por homicídio, vai pegar de quatro a oito de cadeia pelo segundo crime - a tentativa de assassinato - variando de acordo com a avaliação do juiz.

É importante ressaltar que esse julgamento, além de prover de um legítimo ato de justiça, pode orientar um novo rumo para que a segurança em eventos seja içada realmente a uma categoria blindada à ganância, amadorismo, achismos e falta de humanidade.

Em 2013, a comoção gerada pela tragédia no país foi avassaladora. Inúmeras reportagens, matérias foram elaboradas demonstrando que o que tinha ocorrido na Boate Kiss, em Santa Maria, era factível de ocorrer em diversas outras localidades em toda a extensão territorial brasileira.

Durante a madrugada do dia 26 de janeiro de 2013, na apresentação de uma das bandas contratadas para a festa, Gurizada Fandangueira, o vocalista utilizou um sinalizador, embora estivessem em um local fechado.

O artefato pirotécnico soltou faíscas que atingiram o teto da boate, e isso ateou fogo ao isolamento acústico, feito de espuma. As chamas se espalharam rapidamente por toda a boate, pois o extintor que estava perto do palco não teria funcionado. Não existia um sistema de comunicação operante na casa para facilitar a evacuação das pessoas, muito menos equipamentos de sinalização de segurança. Eram irregularidades por todos os lados.

A ausência de uma legislação federativa relacionada a protocolos de segurança em ambientes sociais e até mesmo uma total flexibilização no que diz respeito ao entendimento de variáveis que incitam preocupações e consequentemente, precisam entrar em um radar de planejamento são tópicos de imensa vulnerabilidade que podem macular o segmento de eventos.

Agora ainda mais com a inserção de protocolos sanitários, a segurança dos acontecimentos especiais está de novo na “crista da onda”.

A questão é que muitos projetos apenas realizam performances ocas e automáticas, sem a devida responsabilidade e seriedade. E em diversos casos, a questão orçamentária é inserida como item de saving, para diminuir as despesas e assim, manter, uma boa receita.

Não é possível esquecer, jamais, que a atividade de eventos, em sua nobreza maior, lida com vidas, em todos os momentos, e que as mesmas são consideradas os bens mais ricos de cada um de nós, e por isso mesmo, merece toda a atenção, sem pestanejar em ofertar tudo que estiver ao seu alcance para preservá-las e gerar contínuo bem-estar.

O julgamento da Boate Kiss, como está sendo batizado, pode realmente colocar em xeque a máxima que no Brasil a impunidade impera. Seria um exemplo que poderia intensificar a mudança de postura e comportamento e ajudaria a gerar uma nova cultura, na qual a segurança em eventos, não fosse item opcional, mas sim, elemento número um em qualquer planejamento, visando a troca de uma ação reativa para ações preventivas.

As vidas das 242 pessoas não serão retomadas, mas serão martirizadas como força motriz de mudanças tão vitais para que não tenhamos mais vítimas desse tipo de irresponsabilidade.

A tragédia não pode tornar-se apenas mais um caso de impunidade, ela tem como uma premissa ser um verdadeiro divisor de águas e permanecer na memória como uma fatalidade que não foi evitada, mas que a partir de suas consequências, não mais voltará a provocar lágrimas e revoltas de tantas outras famílias... pois existirá uma priorização, verdadeira, no qual a máxima, ainda com pouca adesão, será a única opção: Segurança em Eventos – Não Dá para Ficar Sem!