Desde que os eventos voltaram com força total no pós-pandemia, uma coisa tem me chamado muito a atenção: o comportamento do público não é mais o mesmo. E não estou falando só da empolgação de estar de volta, de curtir um show ao vivo ou de reencontrar os amigos. Estou falando de algo mais profundo, mais emocional, mais instável. A forma como as pessoas reagem em grupo mudou. A forma como tomam decisões mudou. A paciência diminuiu, a intensidade aumentou — e isso tem impacto direto na segurança e na operação de qualquer evento.
Durante a pandemia, todos nós fomos expostos a um tipo de estresse coletivo inédito. Ficamos presos em casa, consumimos conteúdo o tempo todo, vivemos emoções fortes e, principalmente, perdemos o costume de conviver em grandes aglomerações. O retorno aos eventos não foi só uma retomada econômica e cultural — foi também um reencontro psicológico, um teste emocional em massa. E, como gestor de segurança, venho observando que esse reencontro tem sido mais delicado do que parece.
Hoje o público reage mais no impulso. E isso tem explicação. Daniel Kahneman fala muito sobre os dois sistemas que usamos para tomar decisões: um rápido, automático, movido pela emoção; outro mais lento, racional, analítico. Em um evento, com música alta, luz, calor, gente por todos os lados, quem está no comando do cérebro da maioria é o sistema emocional. Ou seja, as decisões que o público toma — correr, gritar, se aproximar, invadir um espaço, empurrar uma grade — muitas vezes não são pensadas. São respostas automáticas a estímulos que não conseguimos controlar.
O problema é que a gente continua planejando os eventos como se o público estivesse sempre no modo racional. E não está. Basta um atraso de portão, um artista que demora mais para entrar, uma falha na comunicação, para o clima mudar num estalo. E quando muda, é muito difícil reverter.
Teve um evento recente em São Paulo, show gratuito, mais de 300 mil pessoas. A produção fez o que pôde, mas o público estava muito sensível. Bastou um empurra-empurra para dezenas de pessoas passarem mal. Em outro festival no Nordeste, uma chuva forte bagunçou a evacuação. A sinalização estava lá, o protocolo também, mas o público não reagiu como se esperava. Entrou em pânico. E isso acontece porque a gente ainda subestima o emocional coletivo.
Uma teoria que gosto muito — e que tem tudo a ver com o nosso setor — é a do Flamingo Cor-de-Rosa. Ao contrário do “Cisne Negro”, que representa o imprevisto, o flamingo é o risco óbvio, visível, anunciado, mas que ninguém quer ver. Quantas vezes ignoramos superlotação dizendo “ano passado foi assim e deu tudo certo”? Quantas vezes adiamos ajustes porque “o público vai se adaptar”? A verdade é que tem flamingo passeando no nosso planejamento todos os dias — e a gente normaliza.
Por isso, minha defesa é clara: precisamos começar a tratar comportamento como parte central da segurança de eventos. Não adianta pensar só em número de seguranças, cercamento, câmeras. Isso tudo é necessário, claro. Mas é o entendimento da emoção coletiva, da tomada de decisão em grupo, que pode evitar uma crise de verdade.
A multidão de hoje é mais conectada, mais ansiosa, mais expressiva. E o nosso trabalho é fazer com que ela se sinta segura, sem nem perceber que está sendo guiada. É antecipar o desconforto antes que vire reclamação. É comunicar bem antes que surja o ruído. É projetar espaços que ajudam a decidir melhor — mesmo no caos. Isso é gestão moderna de público.
A segurança de eventos, no fundo, não é só técnica. É humana. É uma leitura contínua de pessoas, emoções, estímulos. E quem entende isso, começa a trabalhar não só para evitar incidentes, mas para garantir experiências positivas, memoráveis e, acima de tudo, seguras.
Se você trabalha com produção, com operação, com eventos de qualquer porte, pense nisso. O público mudou. E não dá para fazer de conta que ele é o mesmo de 2019.
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