Dez anos após a Copa do Mundo, o “modelo FIFA” virou pó. O que resta é um conflito aberto sobre o direito de torcer em pé — e sobre quem, afinal, manda nos estádios brasileiros.
A polêmica recente no setor oeste do Maracanã não é sobre uma cadeira. É sobre memória, identidade e poder. Quando torcedores se recusam a permanecer sentados durante a partida, não estão apenas desrespeitando uma norma: estão rejeitando uma ideia inteira de como se vive o futebol no Brasil contemporâneo.
Essa tensão tem raízes profundas — e eu as vi de perto.
Entre 2014 e 2016, atuei como gestor de segurança do Maracanã, no período que sucedeu à Copa do Mundo. Foi ali, no epicentro da modernização dos estádios brasileiros, que passei a estudar o choque entre dois perfis irreconciliáveis: o torcedor e o espectador. O primeiro vive o jogo de forma emocional, ritualizada, coletiva — e ficar em pé é parte indissociável dessa experiência. O segundo busca conforto, visibilidade, organização e sua relação com o espaço é individual, quase contratual.
O Maracanã de hoje recebe os dois. E é dessa colisão que nasce o caos.
O estádio que se levantava e sentava
Nos anos 80 e até meados de 200, o Maracanã era outra coisa. Arquibancadas de cimento, cadeiras azuis desconfortáveis, públicos de mais de 100 mil pessoas. Não havia expectativa alguma de permanência sentada. O comportamento do torcedor era uma coreografia coletiva e espontânea: a cada lance de perigo, o estádio inteiro se levantava; quando a jogada perdia força, sentava novamente. Era o famoso “senta e levanta” — um movimento orgânico, parte da própria identidade do templo do futebol.
Não existia o conceito moderno de “espectador”. Havia torcedores ocupando um espaço que jamais foi pensado para individualização ou padronização de comportamento.
A ilusão de que tudo mudaria
Esse cenário começou a ruir após 2014, quando a modernização impôs diretrizes internacionais como o Green Guide e os padrões FIFA. A lógica era clara: sentar organiza, dá previsibilidade, permite leitura operacional e garante segurança em emergências. Foram implementados protocolos e procedimentos rígidos, acreditamos que o padrão internacional seria internalizado como hábito do carioca.
Dez anos depois, a realidade desmente a ilusão.
Sem comunicação contínua, sem pedagogia do estádio, sem diálogo real com o público, o comportamento retornou ao padrão original: torcer em pé. O passado recuperou o presente. A memória coletiva do “modelo FIFA” se dissolveu e o que emerge agora é uma ação cultural sobre o que significa viver o futebol.
O que está em jogo
A questão nunca foi “sentar ou ficar em pé”. É sobre quem tem o direito de definir a experiência dentro do estádio. É sobre a segurança poder conviver com a paixão. É sobre ser possível equilibrar pertencimento e norma, emoção e controle.
E a resposta não virá pela força, pois públicos e multidões não mudam por decreto e sim pela compreensão, contexto e construção de hábitos.
“As multidões nunca usam a razão e sim a emoção.”
O debate exige leitura comportamental, comunicação clara, negociação entre cultura torcedora e exigências de segurança, adaptação inteligente dos setores.
O Maracanã está no centro de uma competição que vai além dele. É a disputa por definir o futuro nos estádios brasileiros — e quem terá voz nessa definição.
A arquibancada não esqueceu quem ela é.
A pergunta é: quem está disposto a escutá-la?

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