Quando o entretenimento vira cenário de tragédia...
No universo do entretenimento de alta complexidade e magnitude — como festivais de musica, grandes shows, rodeios, estádios e celebrações urbanas — são concebidos para oferecer experiências imersivas ao público, movimentar economias e promover cultura. Mas basta uma arma no coldre errado para que esse cenário se torne palco de caos e luto.
Ainda que a legislação brasileira permita o porte de arma por agentes da lei fora de serviço, há um ponto negligenciado com frequência alarmante: armas e aglomeração não combinam — especialmente onde há consumo de álcool, estímulo sensorial e imprevisibilidade comportamental.
A discussão aqui não é ideológica. É estratégica, técnica e operacional. Estamos falando de gestão de risco, proteção e controle de multidões e prevenção de tragédias perfeitamente evitáveis. É hora de encarar a realidade com lucidez normativa e coragem institucional.
Em um país marcado por desigualdades, violências cotidianas e um debate polarizado sobre segurança pública, há um tema que permanece perigosamente negligenciado: o porte de armas em locais de aglomeração. A presença de pessoas armadas, especialmente agentes da lei fora de serviço, em eventos de grande público tem se mostrado não apenas arriscada, mas tragicamente letal.
Eventos como festivais de musica, shows, rodeios, jogos de futebol e celebrações culturais deveriam ser territórios de convivência, lazer e expressão coletiva. No entanto, episódios recentes indicam que a combinação entre aglomeração e armamento pessoal tem resultado em situações desastrosas, algumas com consequências irreversíveis. A sociedade precisa compreender que a arma de fogo, por definição, é um instrumento de força letal — e sua presença em contextos de entretenimento representa um risco calculado, previsível e evitável.
Diversos casos ilustram esse ponto de maneira clara. Em 2022, o campeão mundial de jiu-jítsu Leandro Lo foi morto a tiros por um policial militar fora de serviço, durante um show em São Paulo. O desentendimento, que poderia ter sido contornado com diálogo, terminou em execução sumária. Em 2010, na Marina da Glória, no Rio de Janeiro, dois policiais federais se envolveram em uma discussão durante um evento de música eletrônica. Um deles acabou morto. Em 2024, em Piracicaba, durante a festa “Fervo”, um tiroteio dentro do recinto deixou dois mortos e três feridos, apesar da presença de segurança privada e revista na entrada. Esses não são acidentes isolados: são consequências de uma legislação frouxa, fragmentada e ineficaz.
Atualmente, o Brasil vive um verdadeiro labirinto legal. Enquanto São Paulo permite o porte de arma a policiais fora de serviço mediante critérios como porte velado, comunicação prévia e proibição de ingestão de álcool (Portaria CMT G Nº PM4-001/1.2/24), o Rio de Janeiro adota uma abordagem mais restritiva com a Lei Estadual 2.526/96, proibindo o ingresso de qualquer pessoa armada em teatros, boates, estádios e casas de show, e exigindo a fixação de cartazes visíveis para informar o público. Já o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03) menciona que eventos com mais de 1.000 pessoas devem impedir a entrada de pessoas armadas, mas a redação vaga e as exceções permitidas tornam a norma inócua na prática.
Esse mosaico normativo não apenas confunde gestores e produtores de eventos, como também compromete a segurança do público. A ausência de uma legislação nacional clara e uniforme cria brechas operacionais perigosas. E como ensinamos em gestão de riscos: onde há lacuna, há vulnerabilidade.
Do ponto de vista acadêmico, os argumentos contrários ao porte de armas em ambientes recreativos são consistentes. A Teoria da Escalada da Violência, de Zimring & Hawkins (1997), sustenta que a mera presença de uma arma aumenta exponencialmente a letalidade dos conflitos. Desentendimentos que, em outras circunstâncias, se resolveriam com um empurrão ou troca de palavras, transformam-se em homicídios quando há uma arma à disposição.
Complementando, os estudos de Steele & Southwick (1985) sobre a psicologia do comportamento alcoolizado demonstram que o consumo de álcool reduz o controle inibitório e eleva a impulsividade. Isso significa que até o mais treinado dos profissionais de segurança pode tomar decisões desastrosas sob o efeito do álcool — e, com uma arma à cintura, essas decisões tornam-se fatais. Por fim, a obra de Marcus Felson (2002) ressalta o conceito de responsabilidade coletiva na prevenção da violência: cabe ao organizador do evento, ao poder público e ao profissional armado a responsabilidade de criar ambientes onde o risco seja sistematicamente minimizado.
Como bem alertava Zygmunt Bauman, “a multidão moderna é líquida: se molda, transborda e colapsa ao menor sinal de tensão”. Em eventos de massa, o comportamento coletivo é volátil, fluido, emocional — e, portanto, perigosamente imprevisível quando exposto a vetores de risco como o porte de armas. Não há estabilidade no grupo onde reina o instinto.
Max Bazerman, por sua vez, aponta que decisões ruins em ambientes complexos muitas vezes decorrem não de má-fé, mas de vieses cognitivos e falhas de julgamento. Em ambientes mal regulados e emocionalmente carregados, até mesmo profissionais treinados tomam decisões desastrosas — especialmente quando armados, sob efeito de álcool ou em situações de estresse.
Diante desse cenário, é urgente que o Brasil adote medidas concretas e uniformes. Três propostas são essenciais:
Alterar o Estatuto do Desarmamento para proibir expressamente o porte de armas em eventos com mais de 1.000 pessoas, independentemente da condição funcional do portador.
Estabelecer um protocolo nacional de triagem e revista técnica para entrada em eventos, com uso de detectores de metais e fiscalização por forças públicas e privadas capacitadas e treinadas.
Promover campanhas de conscientização voltadas às forças de segurança e ao público em geral, reforçando que portar arma em ambiente de aglomeração pode representar risco — não proteção.
A presença de armas em eventos de massa não garante segurança. Pelo contrário: transforma tensões banais em tragédias. Não se trata de desarmar os policiais, tampouco de desrespeitar suas funções. Trata-se de entender que, em determinados contextos e ambientes — como estádios de futebol, arenas e festivais de música —, a prioridade máxima deve ser a vida de todos, inclusive de quem detém o uso legitimo.
Proteger vidas não é uma concessão ideológica. É uma escolha técnica, ética e institucional. E essa escolha exige uma legislação à altura do problema e do risco.
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