A segurança em eventos no Brasil, especialmente nos de alta complexidade e magnitude, sempre foi marcada por tensões e sobreposições entre a atuação da segurança pública e da segurança privada. Desde a década de 1970, consolidou-se uma “zona cinzenta”: de um lado, a predominância da polícia no controle de estádios, arenas e espaços culturais; de outro, a necessidade crescente da indústria do entretenimento de contar com empresas privadas para gerir fluxos, riscos e multidões.
Compreender essa zona cinzenta é essencial para delimitar papéis, evitar conflitos de atribuições e garantir maior eficiência e legitimidade na proteção de públicos.
Um olhar histórico
O modelo brasileiro de gestão de eventos, sobretudo entre as décadas de 1970 e 1990, firmou-se sob uma lógica militarizada: a Polícia Militar acumulava tanto a preservação da ordem pública quanto funções de vigilância interna nos estádios. Esse arranjo, embora eficaz sob a ótica do controle, dificultou por muito tempo a inserção plena da segurança privada.
Até os anos 2000, poucas empresas de segurança se arriscavam a atuar em grandes eventos, dadas a complexidade das operações e a ausência de normas claras que garantissem respaldo jurídico.
Autores clássicos como Canetti (1960) e Le Bon (1895) ajudam a compreender as dinâmicas das multidões. Já Durkheim (1895) nos lembra que a ordem social depende da divisão funcional das responsabilidades — conceito que se aplica perfeitamente à necessária delimitação entre forças públicas e privadas.
Nos últimos anos, a legislação avançou: a Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023) absorveu e modernizou as diretrizes do antigo Estatuto do Torcedor, e o Estatuto da Segurança Privada (Lei 14.967/2024) reorganizou o setor, substituindo a Lei 7.102/1983. Juntas, essas normas abriram espaço para um modelo mais equilibrado e técnico.
O case do Maracanã (2014–2016)
Essa transição se materializou na prática durante minha experiência como gestor de segurança do Estádio do Maracanã, entre 2014 e 2016.
Naquele período, o estádio ainda carregava a herança dos “anos de armadura”: a Polícia Militar realizava revistas internas, mesmo após a Lei Geral da Copa (Lei 12.663/2012) e o próprio Estatuto do Torcedor já preverem a participação de seguranças privados credenciados.
Foi necessário um processo de negociação intensa entre a gestão e a PM do Rio de Janeiro, apoiado por briefings semanais de preparação e reuniões conjuntas no dia dos jogos. Após muito diálogo, implementamos um modelo pioneiro: a revista de acesso passou a ser conduzida pela segurança privada, enquanto a Polícia Militar se concentrou no ordenamento urbano, na proteção externa e na gestão de torcidas organizadas.
Essa mudança não foi apenas operacional. Foi um divisor de águas na profissionalização das arenas brasileiras, aproximando o país das melhores práticas internacionais e mostrando que a zona cinzenta pode ser reduzida com clareza de papéis e interoperabilidade real.
Revista Pessoal vs. Busca Pessoal: distinções legais
Um dos pontos centrais dessa discussão é a distinção entre revista pessoal em eventos e busca pessoal policial:
• Revista pessoal em eventos: realizada por seguranças privados credenciados, em perímetros sob sua responsabilidade, com o objetivo de impedir a entrada de armas, drogas e objetos que representem risco. Está respaldada pelo Estatuto da Segurança Privada (Lei 14.967/2024), pela Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023) e, até sua revisão, pela Portaria nº 3.233/2012 da Polícia Federal.
• Busca pessoal policial: prevista no art. 244 do Código de Processo Penal, ocorre diante de fundada suspeita de crime ou prisão em flagrante, sendo prerrogativa exclusiva da autoridade policial.
O Superior Tribunal de Justiça já consolidou entendimento de que agentes privados não podem realizar busca pessoal — e provas obtidas dessa forma são ilícitas. Essa diferenciação é crucial para proteger direitos fundamentais e dar legitimidade às operações.
Interoperabilidade: da colaboração à cooperação
Superar a zona cinzenta exige mais do que leis: exige interoperabilidade.
Costuma-se confundir colaboração com cooperação. Na colaboração, cada instituição faz sua parte de forma isolada, somando esforços no final. Na cooperação, as ações são integradas e complementares, formando um sistema único (PIAGET, 1973; RAZA, 2012).
Nos eventos, isso se traduz assim:
• Colaborar é quando segurança privada, polícia, bombeiros e equipes médicas atuam lado a lado, mas sem conexão real.
• Cooperar é quando todos compartilham comando, comunicação e protocolos, operando como um único organismo.
É aí que entra a interoperabilidade: a capacidade de integrar diferentes sistemas, órgãos e empresas em ações coordenadas. Na prática, isso significa:
• linguagem comum nas comunicações;
• briefings conjuntos e contínuos (Pré e dia do evento);
• planos de contingência unificados (Safety e security);
• compartilhamento em tempo real de informações e indicadores.
Sem interoperabilidade, temos apenas colaboração fragmentada. Com interoperabilidade, alcançamos a verdadeira cooperação plena, capaz de reduzir riscos e aumentar a confiança do público.
Considerações finais
A zona cinzenta entre segurança pública e privada em eventos de massa é um fenômeno histórico, mas que vem sendo progressivamente transformado pela profissionalização do setor privado e pela necessidade de uso racional da força pública.
A consolidação de um modelo híbrido, sustentado por legislação atualizada, boas práticas internacionais e interoperabilidade efetiva, é o caminho para o futuro da segurança em eventos de alta complexidade e magnitude.
Além de proteger, esse modelo deve zelar pela eficiência operacional com respeito aos direitos fundamentais.
Referências
• BRASIL. Lei nº 14.597, de 14 de junho de 2023. Institui a Lei Geral do Esporte. Diário Oficial da União, Brasília, 2023.
• BRASIL. Lei nº 14.967, de 9 de setembro de 2024. Institui o Estatuto da Segurança Privada e da Segurança das Instituições Financeiras. Diário Oficial da União, Brasília, 2024.
• BRASIL. Lei nº 12.663, de 5 de junho de 2012. Dispõe sobre medidas relativas à Copa do Mundo FIFA 2014. Diário Oficial da União, Brasília, 2012.
• BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 1941.
• CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
• DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
• LE BON, Gustave. Psicologia das multidões. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1995.
• PAUSCHINGER, Dennis. The Permeable Olympic Fortress: Security and the 2014/2016 Games in Rio. Conflict and Society, v. 6, n. 1, p. 1–20, 2020.
• PIAGET, Jean. Estudos sociológicos. Rio de Janeiro: Forense, 1973.
• RAZA, Camila. Cooperação e Colaboração em Ambientes Complexos. Revista de Estudos Organizacionais, v. 8, p. 45–59, 2012.
• SGSA – Sports Grounds Safety Authority. Guide to Safety at Sports Grounds (Green Guide). 6. ed. Londres: SGSA, 2018.
• EIF – Events Industry Forum. The Purple Guide to Health, Safety and Welfare at Music and Other Events. Londres: EIF, 2019.
• STJ – Superior Tribunal de Justiça. É ilícita a busca pessoal realizada por agente de segurança privada. Brasília: STJ, 2022.

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