Enquanto o mundo observa os desdobramentos das políticas econômicas adotadas por grandes potências, uma dimensão frequentemente invisibilizada desses movimentos volta ao centro do debate: o efeito indireto, mas não menos concreto, que decisões de política comercial podem gerar sobre setores inteiros da economia global.
O turismo é um setor regulado por um marco normativo próprio e sofisticado. A Política Nacional de Turismo (Lei nº 11.771, de 2008) estabelece como um de seus princípios fundamentais a valorização da atividade turística como vetor de desenvolvimento econômico e inclusão. Prevê, ainda, que a atuação da cadeia produtiva do setor deve ocorrer com base na transparência, responsabilidade e integração com os demais setores econômicos. Ao lado dessa norma central, o Decreto nº 7.381/2010, que a regulamenta, reforça obrigações de conduta e boas práticas para os agentes da cadeia do turismo, impondo padrões compatíveis com os direitos do consumidor e com os parâmetros internacionais de qualidade.
Nos debates econômicos sobre tarifas de importação, é comum que os impactos sejam analisados sob a ótica da indústria, da balança comercial ou da inflação interna. Menos frequente, mas igualmente relevante, é a análise das repercussões indiretas que essas medidas provocam sobre o turismo internacional e, por consequência, sobre a cadeia jurídica que regula essas relações.
Tarifas generalizadas sobre produtos importados, como as que vêm sendo propostas e discutidas nos EUA, afetam diretamente a percepção de custo de um destino turístico. E isso, em tempos de globalização contratual, não é irrelevante do ponto de vista jurídico.
Turistas não compram apenas passagens aéreas e hospedagens: contratam experiências que dependem de uma cadeia internacional de fornecedores, intermediários e operadores que precificam seus serviços em moedas estrangeiras.
Quando o destino se torna mais caro em razão de medidas protecionistas, não é apenas a demanda que se retrai. Há uma reconfiguração jurídica das condições inicialmente contratadas entre as partes envolvidas, e isso impõe desafios concretos às empresas brasileiras que atuam nesse mercado.
O primeiro ponto que merece atenção é a estrutura contratual internacional. Agências de turismo e demais empresas atuantes na cadeia produtiva do setor que intermedeiam a venda de serviços turísticos internacionais passam a conviver com o risco de desequilíbrio econômico-financeiro nos contratos firmados. Isso ocorre quando os custos dos serviços intermediados sofrem alterações bruscas em razão de fatores externos, como nesse caso específico, oscilações cambiais ou políticas comerciais unilaterais.
Em tais contextos, a invocação de cláusulas de hardship, presentes em muitos contratos internacionais, ganha destaque. Essas cláusulas buscam viabilizar a renegociação ou, em último caso, a extinção do vínculo contratual diante da excessiva onerosidade superveniente. No plano do direito brasileiro, essa mesma lógica é contemplada pelo artigo 478 do Código Civil, que permite a resolução do contrato quando a obrigação de uma das partes se torna excessivamente onerosa por motivos imprevisíveis.
Outro aspecto jurídico relevante envolve a relação com o consumidor brasileiro. O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 1990) impõe às empresas o dever de prestar informações claras, precisas e atualizadas. Em cenários de instabilidade tarifária, torna-se essencial reavaliar a forma como pacotes são ofertados, especialmente quanto ao valor final, disponibilidade e escopo dos serviços. Alterações substanciais posteriores à contratação, sem adequada transparência ou consentimento do consumidor, podem ser interpretadas como prática abusiva com risco de responsabilização civil e administrativa.
Ignorar esses efeitos é negligenciar um risco real. Estar preparado para lidar com instabilidades normativas e econômicas, por meio de contratos bem redigidos, cláusulas adaptáveis e mecanismos de renegociação estruturado, deixou de ser diferencial e passou a ser necessidade.
É nesse ponto que o Direito se mostra instrumento de antecipação estratégica. Não se trata apenas de litigar após o impacto. Trata-se de construir relações contratuais resilientes, que resistam a choques externos e permitam ajustes negociados. O turismo, como setor econômico, está sujeito às mesmas forças globais que moldam o comércio e as finanças, e por isso exige respostas jurídicas igualmente sofisticadas.
Diante de um ambiente internacional marcado por instabilidade normativa, volatilidade cambial e mudanças unilaterais de política comercial, o setor de turismo demanda respostas jurídicas que combinem técnica, aderência regulatória e visão estratégica.
A estruturação de contratos com cláusulas adaptáveis, a incorporação de parâmetros da Política Nacional de Turismo e a conformidade com normas como o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil brasileiro deixam de ser apenas boas práticas, passam a ser requisitos de continuidade operacional. Mais do que reagir a eventos externos, é preciso antecipar juridicamente os seus efeitos e assegurar, por meio de governança contratual e regulação inteligente, a sustentabilidade das operações. Em um setor sensível ao cenário global, o Direito se torna um vetor de proteção econômica.
A política comercial não é neutra para o setor de turismo. E o Direito, quando bem aplicado, pode ser o elo entre a proteção jurídica e a viabilidade econômica das operações internacionais.
Artigo também publicado no Valor Econômico, economia, finanças e negócios.
* Bruno Cação Ribeiro é Head de Hospitalidade no FAS Advogados em cooperação com a CMS.
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