Desembarquei no aeroporto Francisco Sá Carneiro, no Porto, segunda maior cidade do país em crise, e nem me dei tão mal assim. Depois de passar pela imigração sem precisar falar com nenhum oficial mal encarado, pois utilizei o sistema automático de controle de entrada, uma máquina que faz a leitura do passaporte e libera a catraca de acesso (deve ser a crise!), coletei minha mala naquelas esteiras enormes e confortáveis com que tanto sonhamos nos aeroportos do Brasil sem crise. Meu amigo lá estava à minha espera. Fomos a uma loja da Vodafone, operadora de telefonia celular, para comprar um chip que me permitisse ter um número e navegar na internet. Com 10 Euros (cerca de 32 reais), saí da loja com um número habilitado e internet banda larga por trinta dias (deve ser a crise!). Pegamos o carro e seguimos até Guimarães por uma estrada que talvez tenhamos por aqui no futuro, bem no futuro deste país sem crise. O melhor de tudo é o sistema de pedágio. Você só paga quando deixa a rodovia, e não em praças de pedágio no meio do percurso, que só causam congestionamentos e irritação. O raciocínio, apesar de português ou exatamente por isso, é bastante lógico: se você vai até o fim da rodovia, para quê parar no meio para pagar parte do pedágio? Cobra-se tudo ao final, na alça de saída. Aliás, só se paga pedágio nas alças de saída. Simples e lógico não acham? (deve ser a crise). Para quem tem o "via verde" (equivalente ao nosso Sem Parar), nem isso é necessário, pois o débito, claro, é lançado na conta corrente (nem precisa ter cartão de crédito e não se paga adiantado). Em Guimarães fiquei na casa desse amigo, um apartamento duplex com 250 m2 em área nobre da cidade, alugado por 480 Euros, cerca de 1.500 reais, incluindo condomínio, (deve ser a crise!). Fomos almoçar ao shopping e pagamos por uma excelente refeição o equivalente a 22 reais, com direito a bebida e sobremesa (maldita crise!).
Para encurtar a história, pois a esta altura o leitor já sacou onde quero chegar, vou dizer que rodei 6.000 quilômetros de carro, isso num país com cerca de 800 de norte a sul e pouco mais de 250 de leste a oeste. Ou seja, andamos o diabo, esquadrinhamos os quatro cantos de Portugal visitando lugares que eu não conhecia e revisitando alguns clássicos. O fato é que, apesar da crise, ou mesmo por causa dela, fiquei hospedado no charmoso Vila Galé de Cascais (http://www.vilagale.com.br/pages/hoteis/?hotel=11), um dos lugares mais sofisticados da Europa, bem ao lado da Boca do Inferno (uma das paisagens mais fotografadas da grande Lisboa), num apartamento com vista para o mar azul da Riviera portuguesa, por justíssimos 65 Euros (cerca de 200 reais). Mas não foi uma exceção. O Vila Galé de Albufeira (http://www.vilagale.com.br/pages/hoteis/?hotel=5), um balneário badalado no Algarve, sul do país, também cobrou 70 Euros pela diária em apartamento duplo. Só vendo para acreditar. Mas não ficamos só em lugares badalados, conhecemos cidades, vilas e aldeias, lugares conhecidos e anônimos, ícones do turismo e simples promessas. Experimentamos o Ibis de Évora, no Alentejo (http://www.ibis.com/pt/hotel-1708-ibis-evora/index.shtml), aquela cidade da famosa capela dos ossos, lembram-se? Pois é, ali pagamos míseros 32 Euros (cerca de 100 reais) pelo quarto duplo, bem em frente às muralhas medievais da cidade, ou seja, preço de "temos vaga para rapaz" aqui no país desenvolvido e sem crise. Um jantar com bacalhau, polvo grelhado, vinho, café e sobremesa, num dos restaurantes mais procurados de Évora, saiu por 15 Euros (48 reais) por pessoa! (deve ser a crise). Percorrido o sul, voltamos ao norte e o show continuou. No hotel Forte de São Francisco ( www.fortesaofrancisco.com) , um legítimo quatro estrelas em Chaves, minha terra natal, que fica dentro de uma fortaleza do século XVI, pagamos outros 60 Euros pela hospedagem em meio a obras de arte, tapetes de arraiolos e madeira de lei. Mas a experiência inesquecível daquele país em crise, foi a noite que passamos no indescritível Vidago Palace Hotel ( vidagopalace.com/pt ), a 18 quilômetros de Chaves, um hotel cinco estrelas (deveriam ser 6) construído em estilo clássico em 1910 num parque natural de 40 hectares, com campo de golfe, SPA, nascente de água mineral e decoração suntuosa, por 158 Euros (cerca de 500 reais). O imponente edifício central, recentemente reformado pelo premiado arquiteto Siza Vieira, já foi considerado o melhor hotel da Península Ibérica, e, na época de sua inauguração, recebeu o rei D. Manuel II, tal era a importância do acontecimento. Em meio a porcelanas chinesas, louças inglesas nos banheiros, e cristais de cair o queixo, o serviço impecável fez daquela noite uma experiência ímpar, como, aliás, deveriam ser todos os pernoites em equipamentos daquela categoria. O cardápio de travesseiros, o tapete bordado à mão nos pés da cama depois da "abertura de cama" feita pela camareira, com direito a chinelo na posição correta, chocolate na dobra do lençol e aquecimento ligado na temperatura ideal, são apenas detalhes que ajudam a entender o que é um serviço de luxo a preço de quatro estrelas no Brasil sem crise!
Mesmo assim, o fato intrigante é que os portugueses continuam a sonhar com o clima ameno do Brasil e com nossa pujante força econômica. Nove em cada dez portugueses que conheci adorariam vir para o Brasil aproveitar o calor, as oportunidades da economia e o pleno emprego. É claro que eles não fazem a menor ideia do que os espera aqui. A maioria dos lusitanos ainda não sabe, nem poderia saber, a diferença entre crise de pobre e crise de rico, pois só aqui estiveram de férias aproveitando os cenários que algumas cidades montam para o turista! A vida real, essa só se experimenta quando se fixa residência e se toma contato com o Brasil além das paisagens e atrativos turísticos. Para aqueles que gostam de comparações, já que falamos de preços e tarifas, leve-se em conta que lá, no país da crise, o salário mínimo é de 565 Euros, mais ou menos 1.800 reais, ou seja, o poder de compra dos portugueses é sensivelmente maior do que o nosso. Como os preços, com raríssimas exceções, são menores que aqui, já se vê onde quero chegar, ora pois! Mas como explicar a eles que o Brasil que tanto cobiçam não tem estradas, nem hospitais, nem transporte público, nem calçadas adequadas em suas cidades, nem serviços de qualidade? Como explicar aos portugueses que boa parte da população brasileira ainda luta por saneamento básico, por coleta de lixo, por ensino básico de qualidade? E como justificar para os portugueses que, a cada dia, milhares de brasileiros caminham por horas debaixo do sol inclemente do nordeste para conseguir alguns litros de água potável? Lá, no país da crise, essas são questões superadas há décadas, claro! Mas aqui, no país da moda, no país da Copa e da Olimpíada, ainda são questões que afligem boa parte de nossos cidadãos. Aliás, cidadãos? Não, longe disso, está aí mais uma diferença entre nossos povos e nossas crises. Lá, com direito a hospitais públicos, transporte público e ensino público padrão FIFA eles são cidadãos de fato, e não meros figurantes da ópera bufa que se encena no planalto central brasiliense. Depois de 29 dias convivendo com a crise portuguesa, a pergunta que me ocorre é: crise? Mas que crise? O desemprego (15%), ainda alto, concordo, está caindo gradativamente, e já atingiu patamares mais próximos da média europeia (12%) do que dos verificados na Espanha (26%) ou Grécia. Os títulos da dívida pública, lançados pelo governo na primeira quinzena de janeiro, foram largamente aceitos e comercializados com a menor taxa de juros dos últimos anos, prova da confiança dos mercados na recuperação da economia. Enfim, quando vista de perto a crise não parece tão assustadora, e a verdade é que os portugueses, se não fossem tão pessimistas, tão rabugentos e tão fatalistas, poderiam enxergar o seu país com outros olhos e parar de sonhar com miragens tropicais. Mas até os compreendo, não fosse eu um deles, claro! Na verdade, não foi à toa que inventamos o Fado, aquela música melancólica, pungente, dramática como a alma de seus autores. Em contrapartida o Brasil tem o Samba, um gênero musical que se destaca pela displicência melódica, pela descontração de suas letras e pela cadência malandra de sua batida. Pois é, há uma razão para tudo, e cada país tem a crise que merece!
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