A COPA É NOSSA - “Mísera sorte, estranha condição”

Os mais recentes acontecimentos de teor político-social preocupam. Porque o povo brasileiro parece revoltado e em revolta, porque parece desmandado, completamente desorientado, mais à procura de culpados do que de soluções, porque parece ser alvo de diversos tipos de manipulação e, finalmente, porque parece que sofre e se vira contra si próprio.

O Brasil tem símbolos, ícones e manifestações culturais que o marcam e o caracterizam e, mais do que tudo isso, fazem parte da sua identidade enquanto nação. Brasil é café, Brasil é samba e bossa nova, Brasil é Carnaval e Brasil é… futebol.

O futebol é um desporto que arrasta milhões de adeptos e assume a dimensão de um fenómeno cultural a que quase ninguém fica indiferente. Trata-se de um fenómeno de dimensão global. Não ignorável, portanto.

Acontece, entretanto, que os mais recentes acontecimentos de teor político-social preocupam. Porque o povo brasileiro parece revoltado e em revolta, porque parece desmandado, completamente desorientado, mais à procura de culpados do que de soluções, porque parece ser alvo de diversos tipos de manipulação e, finalmente, porque parece que sofre e se vira contra si próprio.

E ninguém impôs isso ao povo brasileiro. Foram os brasileiros, enquanto povo, que se afirmou com essas características, que construíram e assumiram essas manifestações culturais, donde negá-las parece assumir contornos de uma macro negação da sua própria identidade.

A grande nação brasileira está a atravessar graves problemas sociais e políticos. Altíssimos níveis de pobreza extrema, assimetrias financeiras muito acentuadas, o problema da marginalidade e da criminalidade, a falência do sistema público de saúde e sérias dificuldades em manter um sistema nacional de educação público e de qualidade e transversalmente a todos os outros e que não só está na sua génese como constitui um sério obstáculo à sua solução: a corrupção.

Olhando para os graves problemas que atravessa, olhando para o universo faustoso que a organização da Copa 2014 comporta, estão criadas as condições para fazer do certame o bode expiatório de todos os problemas e insuficiências e promover o seu linchamento. Como escreveu Camões, “Mísera sorte, estranha condição”.

Como quase sempre acontece nestes casos, geram-se dicotomias e antagonias que dividem a população. Há os que são a favor da resolução dos problemas e, como tal, contra a realização do certame e há os que são a favor da Copa e a seguir se pensa de novo nos problemas.

Podemos ser contrários ao que aí está, mas enfrentar o “status quo” opondo-se à Copa, além de inútil, é um ato masoquista. Como diz Platini, é tão importante para os torcedores virem à Copa no Brasil, quanto para os muçulmanos irem a Meca.

Os brasileiros deveriam exigir aos seus governantes, nada mais, nada menos, que a realização da melhor Copa e a resolução dos problemas que assolam a nação. O Brasil tem potencial e gente para solucionar os problemas que enfrenta sem descaracterizar-se culturalmente.

A hora é de deixar a nossa grande cultura acontecer como pode, valendo-se da improvisação na qual somos treinados, difundido a alegria de que somos capazes e de que o resto do mundo precisa.

Ora, os problemas existiam ou não existiam muito antes do Brasil assumir a organização da Copa 2014? Se lincharem a Copa e suspenderem a sua realização, os problemas ficariam resolvidos? Pois, como se diz, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

A solução dos problemas sociais tem de ser prioritária, mas não pode levar o país a negar a sua própria identidade nem aquilo que o povo chamou a si como sendo as suas manifestações culturais. Por essa ordem de ideias, a do linchamento da Copa, enquanto houver um problema social por resolver, não pode haver Carnaval, não pode haver um concerto de música, não pode haver uma peça de teatro e, em boa verdade, também não deveria haver festas de anos, casamentos nem churrascos em família.

Evocando a tradição grega da trégua sagrada, devemos proteger a Copa e torcer por um jogo limpo como o de Pelé. Quando jogou pelo Santos contra uma equipe francesa no Parc des Princes, foi atacado por um beque que o chutou indiscriminadamente. Partiu para a luta, aplicando uma série desmoralizante de dribles. Fez valer a Moral do Jogo, que exige o jogo para ganhar. Lembrou que, além de vivermos num país onde penamos por causa da injustiça social e da insegurança, somos súditos de uma monarquia da qual ele é o rei.

Assustam os problemas, mas assusta mais, e dói, assistir a uma nação virar-se contra si mesma, mutilar-se da sua cultura e da sua identidade e linchar-se na rua. O que é efetivamente necessário é ser exigente para com os políticos, cobrar-lhes a restituição da paz social, da qualidade de vida e dos serviços públicos, e, simultaneamente, cobrar-lhes a garantia das manifestações culturais que são intrínsecas ao Povo. O que é preciso, é acabar com a corrupção, com a fome, com a pobreza. Isso é que é preciso. Não é linchar a Copa!

SERGIO JUNQUEIRA ARANTES

* Agradeço à Betty Milan e João Paulo Videira que me inspiraram e ajudaram a construir este editorial